Meu filho mais velho, Ítalo, é um poço de carinho, “beijos, abraços e cafunés”. Coisa mais linda da mamãe! Acho lindo quando ele vira para minha mãe, minha sogra, minhas irmãs, para Ana e minhas cunhadas e diz um sonoro EU TE AMOOO! Quem não se sente lisonjeada ao ouvir tamanha e sincera declaração de um garotinho de quase 4 anos?! É uma delicia!
Porém, hoje, na sala de espera da pediatra, ele olhou para a recepcionista, que mal conhecemos, e disse: EU TE AMO!! Chamei ele para dentro do banheiro e conversei dizendo que ele deveria dizer que ama apenas para as vovós, as titias e titios, mamãe e papai e irmãozinho. E foi então que ouvi a resposta mais linda: “mamãe, mas eu amo tooodo mundo! Eu amo você também!” E ainda tem mais, para fechar com chave de ouro:
“mamãe, meu coração é limpo!“
Achei tão interessante essa última frase. E então fiquei me questionando: o que será que ele estava querendo dizer com “meu coração é limpo!”. Conversei então com outras pessoas, falei para o pai dele, que ficou mega orgulhoso com esse jeitinho dele, tão inocente e amoroso de ser, mas também, assim como eu, sem saber ao certo o que ela (a frase) queria dizer. E aí me surgiu a pergunta:
quando nossos corações passam a ficar sujos? O que precisa acontecer na nossa vida para que nosso coração se torne “sujo”?
O Ítalo tem um primo mais velho, o Nicolas, que tem 8 anos. Ítalo tem apenas 4 (incompletos), então, muitas vezes os dois não se entendem. As brincadeiras são diferentes, o que às vezes os distancia. Nicolas é muito mais independente, já o Ítalo, não, é todo dengoso, adora um colo e cafuné. Apesar do Nicolas também adorar, mas faz questão de manter a fama de mau de um garoto grande de 8 anos (completos) de idade. Nicolas é bilíngue (fala inglês e português), já sabe ler, contar e detesta o barulho de choro. Ítalo não sabe nem ler, nem contar, chora com frequência e fala um inglês, digamos, engraçado (que só ele mesmo entende). Ítalo idolatra o primo mais velho! Tudo quer fazer com ele, como ele, quer ser o próprio Nicolas, se isso fosse possível. Mas Nicolas, muitas vezes, não tá nem aí para o meu pequeno-frágil-inocente-café com leite (ou “creme com leite”, como o Nicolas mesmo diz) filhinho querido.
E a mamãe coruja aqui fica com o coração na mão, querendo, de alguma forma, intervir e, se eu pudesse falar com as palavras-sem-filtro, vindas diretamente do meu coração de mãe, eu diria para o meu querido-amado-sobrinho-afilhado: “quem você pensa que é para não querer brincar com meu filho que é tão legal, tão divertido e tão gente boa?? Hein?! Hein?!“. Mas eu não posso, não devo e não quero fazer isso. Quer dizer, querer, querer, eu quero! Mas não faria o menor sentido, já que estou criando meus filhos para serem independentes de mim. Então, meu questionamento é: por que é que dói tanto em mim a rejeição, o abandono do Nicolas para com meu filho?
Espera um pouco! Trata-se de um abandono? De uma rejeição? Ou apenas de uma falta de identificação entre duas crianças com idades e habilidades tão diferentes? Então, por que será que me parece abandono? O que minha criança ferida está falando de mim, dos meus traumas e da minha história de vida, que essa situação já me remete a um medo estrondoso da rejeição?
Me lembrei de algumas histórias que já ouvi, e olha que já ouvi muitas, de adultos que eram de uma forma quando eram crianças e que, de repente, mudaram. Por exemplo, minha irmã, mãe do Nicolas, era uma tagarela na infância, ela falava muito mais do que eu (vocês imaginam?). Quando eu era criança era a sombra dela. Mal falava! Era muito calada. Na minha infância, ela era minha referência principal, os passos dela eram meus passos. O fato de ficarmos 9 dias com a mesma idade sempre foi, para mim, motivo de orgulho. “Ficamos 9 dias gêmeas”! Quando adultas, ela silenciou e eu comecei a tagarelar.
Eu sou a caçula de três filhas mulheres. Nos meus 11 anos, eu queria fazer tudo que minha irmã, 3 anos mais velha que eu, fazia. Então, eu queria sair à noite, paquerar, dançar, enfim, coisas que adolescentes fazem. Mas a minha irmã mais velha não me acolhia como minha irmã-gêmea costumava fazer. E eu me sentia extremamente abandonada e rejeitada por ela e pelas minhas primas da mesma idade (que ela). Mas será que se tratava de abandono mesmo? Ou era uma piveta querendo fazer programas de adolescentes, e atrapalhando os esquemas delas?
Eu sei que não estou contando nenhuma história inédita. Muitos de vocês que estão lendo esse texto passaram por situações semelhantes. Isso é comum! Somos os caçulas, mascotes, cafés com leite, enfim.
O que é diferente, então? O que difere da minha sensação de abandono do sentimento que meu filho pode vir a sentir? E isso vai acontecer, sim! Seja com um primo, com um amigo da escola, com um colega de trabalho, com uma namorada ou namorado que ele venha a ter. Será que o Ítalo tem suporte para elaborar essas situações como fazendo parte da vida, e não como estar sendo abandonado, rejeitado, inferiorizado enquanto sujeito, não merecedor de amor, de carinho, de cuidados?
Ele tanto pode, como será, muitas vezes, abandonado. A grande questão é que eu não quero que ele se sinta abandonado emocionalmente, desvalidado, sem colo para fugir em momentos assim. Isso que vejo muitas vezes no consultório e fora dele. Pessoas que passam por situações desse tipo e não tem para onde correr. Tiveram que ficar chorando num cantinho da parede sozinhos, sentindo-se as piores pessoas do mundo, por estarem sendo rejeitadas naquele momento, naquela situação pontual, por aquelas pessoas que seriam, por algum motivo, especiais para elas. Mas isso não faz de nós os piores seres humanos do mundo, sem valor, descartáveis.
E eu digo isso, porque vejo, infelizmente, constantes noticias de adolescentes que acabam com a própria vida por sentirem-se rejeitados. Seja por bullying, término de namoro ou por não passar em uma seleção. Essa rejeição é tão forte, que se a pessoa não tem pessoas que a apoiem, deem suporte, que esclareçam que aquela situação não a define, ela pode, sim, sentir-se inferior a outras e não querer/conseguir mais colocar-se em situações de risco e estresse que todos nós sempre passaremos, durante todas as fases das nossas vidas. Seja no trabalho para conseguir uma promoção, seja no vestibular, seja na vida amorosa.
Enfim, após toda essa longa reflexão, vocês conseguiram responder à pergunta: quando sentiram que o coração de vocês tornou-se “sujo”? Não, não vale a resposta: quando me decepcionei com alguém, quando me frustrei, quando alguém me fez mal. Não, não se trata disso. Mas sim de não termos colo em situações estressantes. De nos sentirmos sozinhos, perdidos, pois é assim que uma criança ou adolescente se sente quando, por qualquer motivo, alguém ou um grupo, não quer a presença dele. Melhor dizendo, é assim que qualquer pessoa, em qualquer idade, se sente.
A última do Ítalo foi a seguinte frase: “mamãe, eu estou tão feliz!” (no dia da semana em que seu pai foi deixá-lo e buscá-lo na escola, e ainda mais almoçou em casa). Eu disse: “que bom, meu amor!”. E ele finalizou com a pérola que me gerará infinitas reflexões:
“meu coração está brilhando!”
Ah! Ainda teve uma musiquinha: “a nossa felicidade, a nossa felicidade, faz coisas muito legais! Eu amo tooodooo mundo! Eu amo vocêêê!”. Sem mais…
Caroline Vieira – psicóloga (CRP11/05090)
@psicoterapiadecasal
(fotografia Fábio, autoral e Bruno)