“Eu queria ter adoecido antes”

Não. Essa frase não foi dita, nem pensada, por mim. Quem falou essa frase recentemente foi meu pai. Ele tem 86 anos e, em 2017, teve um AVC. Estávamos sem contato com ele desde 2012, ano em que casei e ele não apareceu na minha festa de casamento. Bem, a história é longa e eu falo um pouco sobre ela no meu livro “Disposição para Amar”, mas preciso relembrar aqui alguns pontos para vocês compreenderem a força dessa frase: “eu queria ter adoecido antes”.

Meu pai é militar da reserva (aeronáutica). Teve três filhas mulheres e uma esposa 25 anos mais nova que ele. Autoritário, machista, violento. Sim. Tudo isso junto. Na verdade, bem comum vir esse “combo”, não é mesmo? Minha mãe conseguiu se separar, depois de viver 30 anos uma relação abusiva, quando suas filhas já estavam minimamente “encaminhadas na vida”. Isso aconteceu em 2006. Tentamos ter uma relação com meu pai depois da separação, mas muitos comportamentos foram nos afastando, até o ponto que ficou inviável um contato sadio. Era difícil demais.

Em 2017, ele adoeceu. E tudo mudou. Não, não é conto de fadas. Ele não se tornou “outra pessoa”, nem fez com que esquecêssemos todos os traumas que passamos na infância e na adolescência. O que fez com que lidássemos melhor com os traumas foi a terapia, a busca de autoconhecimento e, também, a mudança (recente) de comportamento dele e nossa também, claro. Um relacionamento é via de mão dupla.

Como ele ficou doente, toda a família se esforçou para cuidar dele. Eu estava grávida do meu segundo filho e não conseguia nem pensar na possibilidade de encontrá-lo. Estava me preservando. Fui respeitando meu tempo e me cuidando para esse encontro. E, por incrível que pareça, ele mudou muito, sim, mas não foi uma mudança linear. Lembro de um dia que estava em casa e saí correndo para buscar minha irmã mais velha na casa dele, pois ele estava gritando e a ofendendo na frente do meu sobrinho. Toda minha infância e adolescência surgiu como um raio na minha cabeça, no meu coração. “Não! Eu não vou mais viver sentindo ISSO!”, jurei a mim mesma. E me afastei novamente.

Ele perdeu o contato com os netos e ficou, novamente, sozinho. Alguma coisa aconteceu com ele. Ele pediu ajuda à Terapeuta Ocupacional. Disse que precisava lidar melhor com a raiva dele. Foi atendido por um psiquiatra e, desde então, toma medicamento. Ele é um avô amoroso. Meus filhos amam o vovô deles. E hoje ele é um pai cuidadoso.

Um dia desses, quando conversávamos na varanda da casa do meu pai, minha irmã, Cybele, estava contando como ficou com medo quando descobrimos o meu diagnóstico da leucemia (só ela sabia a gravidade do início do tratamento) e começou a chorar. Eu me levantei, dei um abraço nela e logo depois meu pai levantou-se também. Eu perguntei se ele queria ir ao banheiro ou se estava precisando de alguma coisa. Ele disse: “não, não. Vou dar um abraço nela.”, e apontou para minha irmã. Ficamos muito emocionadas.

Nessa jornada espiritual que descobri que estou inserida (eu querendo, ou não), tenho buscado entender um pouco mais sobre minha árvore genealógica. Uma das coisas que descobri é que minha avó paterna era bem seca com os filhos. Fiquei pensando na vida do meu pai como filho e como ele aprendeu o que era o amor, o que era amar. “Eu devia ter adoecido antes”. Ele disse essa frase quando perguntei para ele, brincando: “e aí, pai? Essa bagunça toda tirando o sossego do senhor, hein?”, me referindo às crianças que brincavam, correndo e gritando, no jardim da casa dele.  

Eu me perguntei se também “agradecia” por ter adoecido, como ele. Mas não. Eu me arrependo de não ter percebido meu modo adoecido de funcionar, antes do meu corpo pifar, por não aguentar mais a pressão.

Em 2018, meu marido foi chamado em um concurso público. Uau! Era isso que nós tanto esperávamos para que eu diminuísse o ritmo de trabalho, ficasse mais tempo em casa com as crianças e pudesse relaxar um pouco. Isso aconteceu? Não! Claro que não. Pelo contrário. Eu trabalhei ainda mais, pois acumulei muitas atividades domésticas, que eram de responsabilidade dele, e não consegui me desapegar de tudo que já havia conquistado no trabalho. Terceirizei muitas coisas para “agilizar” os processos, mas também me desconectei de coisas que me alimentavam e traziam cor, alegria e nutrição ao meu fazer enquanto professora e psicoterapeuta.

Fui me tornando referência no atendimento com foco nas relações amorosas (tanto atendendo casais como individualmente) e, como um trator, tinha mil ideias “geniais” e imperdíveis para serem colocadas em prática “pra ontem”. Eu estava muito bem “ensaiada” no modelo capitalista que eu tanto jurei a mim mesma que não me encantaria. Mas eu fui sugada e entrei na dança. As “pequenas coisas” não tinham mais espaço na minha agenda. Eu só dormia, eu só relaxava, quando meus olhos não aguentavam mais abertos. “Ah! Quantas ideias geniais surgiam na madrugada!”, frase comum dita por mim. Mas não existia tempo para descanso. Fui ensinada que dormir é coisa de gente preguiçosa, que não quer nada da vida. Ah! Meu cochilinho diário após o almoço, atualmente, mostra que essa verdade que introjetei não condiz em nada com a realidade.

Comecei um processo de me comparar demais com os outros e acreditei que havia chegado a um lugar confortável dentro da minha profissão. Tudo aquilo que lutava contra, me engoliu. Fui seduzida. Não é por nada que quis assistir, quando estava internada, durante as infusões de quimioterapia, a trilogia de “Senhor dos Anéis”.

Prometi a mim mesma que esse um ano de parada obrigatória, devido ao tratamento contra a #leucemiapromielocíticagudam3, não seria em vão.  Vou aprender com ele. Sem promessas absurdas de uma mudança extrema, mas (me) prometo estar mais atenta e ser mais amorosa comigo mesma.

Autora: Caroline Vieira

Um comentário em ““Eu queria ter adoecido antes”

Deixe um comentário